Crônica escrita por Sílvia Lúcia
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Esquecer o nome de alguém, ou nem conseguir se lembrar de quem se trata a pessoa, pode ser bem constrangedor, nos fazendo ficar à deriva numa conversa que soa interminável. Enquanto nos digladiamos escrutinando a memória sem conseguir localizar afinal de onde vem a criatura, ela continua a nos falar animadamente de nossa vida, demonstrando ser alguém íntimo e familiar. Coisa bem terrível e, no entanto, não tão rara.
Mais complicado é quando se esquece o aniversário de uma pessoa amada. Isso costuma gerar amargas cobranças e prolongados ressentimentos, sendo interpretado como fruto de desconsideração ou prova de falta de amor.
Nos ingênuos tempos da brilhantina, o máximo de trauma familiar era se esquecer de buscar os filhos na escola. Fato acontecido com muita gente de boa índole e coração amoroso.
A criança acabrunhada, beiçuda, cabisbaixa ou em choro inconsolável, acompanhada por uma professora de braços cruzados, sobrancelhas em riste e semblante de reprovação, esperava quem, esbaforido, descabelado e coberto de vergonha, chegava atrasado para buscar o aluno após o horário estabelecido. Inútil era buscar qualquer explicação que justificasse a constrangedora falha, colocada na condição de indesculpável.
Dependendo da fragilidade subjetiva, a situação poderia fazer marca e se tornar uma catástrofe psicológica na vida da criança ou apenas fazer parte do anedotário das situações familiares, coisa a ser recontada com ares de graça em fases bem posteriores da existência.
Nesses tempos mais recentes, entre tantas coisas inconcebíveis, surgiu um tipo de esquecimento até então impensável. Crianças bem pequenas, na maioria das vezes bebês, morrem por serem esquecidas dentro do carro. O espanto indignado dos primeiros casos levou a que fossem tratados como suspeitos de filicídio.
A repetição fez deixar claro que este tipo de tragédia não era gerado por um desejo inconsciente de matar, mas por uma falha, um cruel lapso de memória. O roteiro dos casos relatados traz um dado unânime: a mudança de rotina fez com que fosse esquecida a passagem e o desembarque da criança na escolinha.
O ato de levar os filhos para a escola ou para a creche é algo tão automático quanto o escovar os dentes, feito sem cerimônias ou mesmo qualquer forma comunicação. É quase uma entrega, feita às pressas, com o carro mal estacionado, às vezes até no meio da rua. Enquanto a criança vai sendo despejada, o pensamento continua conectado com os quefazeres do cotidiano. Na memória, esse tipo de tarefa repetida diariamente fica arquivado entre atos automáticos, aos quais não se precisa dedicar atenção por ser feito “naturalmente”.
Aí reside o perigo – agora mais uma vez dramaticamente confirmado. As crianças que já caminham ou falam têm recursos de autodefesa para se desvencilharem, mas os pequenos são completamente reféns da atenção alheia.
As falhas da memória encontram na psicanálise explicações quase canônicas, associadas a motivações do imperativo inconsciente, senhor de todas as causas. Por esta leitura, sempre sobrarão suspeitas para nossos lapsos ou motivos submersos trazidos à tona pelas falhas de nossos atos.
O arquivo de nossas vivências é poderoso e complexo, mas por mecanismos neurofisiológicos ou por motivos inconscientes está sujeito a entrar em colapso diante das sobrecargas, das chuvas e tempestades que nos castigam.
A valiosa memória é capaz de nos trapacear, de bloquear conteúdos importantes, embaralhar lembranças, acrescentar elementos inexistentes (falsas memórias) ou sofrer breves panes. Pequenas falhas, mínimos esquecimentos, podem acabar tendo grande efeito e até resultar em tragédias. Precisamos assumir que a memória não é 100% confiável, como gostaríamos que fosse.
Saber disto talvez ajude a ter maior tolerância com os esquecimentos cotidianos mais banais – que não precisam ser tão dramatizados - e ter um redobrado zelo diante de situações que insistentemente têm se revelado gravemente perigosas, tragicamente fatais.
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