As palavras mudam seu sentido ao longo do tempo, isto é natural e necessário. Os significados se modificam acompanhando as transformações da dinâmica da vida. Um exemplo disto é o termo desapego ou mais precisamente a expressão “ser desapegado”. Noutras eras, tinha uma conotação um tanto pejorativa, pois andava de braços dados com a idéia de desamor, descaso, frieza afetiva, irresponsabilidade. Era uma época em que a vida estava envolta na ilusão de permanência, tudo parecia ser feito para durar eternamente: dos pisos e móveis de madeira de lei, que ornavam as casas por várias gerações, aos vínculos afetivos e familiares. Passava-se a existência toda morando num mesmo lugar, convivendo com a mesma roda de amigos, frequentando familiares, ganhando o pão nosso de cada dia no mesmo emprego. Tudo era mais ou menos fixo e determinado, sem que a situação gerasse qualquer forma de frustração ou conflito. Cumpria-se o destino traçado pela geografia do nascimento ou pela tradição da família. A vida era quase estática. O dia a dia andava a passos lentos, com direito a conversas nas calçadas e convívio permanente com toda a família. Sair de seu pago representava um quase exílio, com direito a saudade e recepções calorosas a cada retorno, ainda que o destino fosse uma cidade vizinha. Mudar de emprego ou romper com o casamento era coisa dos desatinados.
Quem decidia rumar para outras terras ou se envolvia em mudanças muito constantes, se desfazendo de suas coisas e seus vínculos, era pejorativamente considerado “desapegado”. Talvez lhe faltasse amor aos vínculos ou não preservasse a importância daquilo que era então sagrado. Desfazer laços de convívio, desapegar-se, era uma atitude de gente desatinada e aventureira – expressão que também tinha um sentido muito negativo, pois a palavra aventura andava junto com a idéia de algum romance inconsequente e não com esportes ou viagens.
Virando páginas do livro da vida, nos deparamos hoje com outros sentidos para o termo desapegado. São desapegados os ambiciosos, arrojados e “descolados”, que varam o mundo para viver aventuras ou na ilusão de encontrar fortuna ou fama. Não tem apego a família, a cidade natal, aos amigos, pois querem para si o mundo. Porém são mais genuinamente desapegados aqueles que prescindem do conforto físico e dos artigos de luxo ou conforto, devotando a existência a um sentido mais transcendente e espiritualizado.
A atitude de desapego parece muito coerente e bem ajustada aos tempos presentes, nos quais o que menos se tem é permanência, estabilidade, segurança e garantia. Sofremos constantes sobressaltos climáticos, com direito a chuvas, trovoadas, raios, enchentes e mais outros espetáculos da força da natureza, diante dos quais se revela o tamanho de nossa impotência. Temos nossas vidas atravessadas e controlados por sistemas virtuais, intangíveis aos olhos e aos dedos. Este é um mundo impermanente, regido por senhas e computadores, nos quais depositamos os arquivos de fotos de nossos bons momentos e uma série de documentos que pretendemos preservar. Nossa segurança, entretanto, dura o incerto tempo em que as coisas funcionam. A qualquer momento surge uma pane e desaparece para sempre o que nos parecia tão importante e fundamental. Não é preciso perder a casa para se sentir meio sem chão, é suficiente perder tudo o que se tem por guardado no universo do computador pessoal, para se descobrir meio sem norte, meio órfão de pai e mãe.
Portanto, independente de filosofia ou de nossas condições de vida, precisamos – todos, absolutamente todos – desenvolver o desapego e aceitar perdas. Podemos cuidar, zelar pelo que temos afetiva e materialmente e também por nossa saúde, vitalidade, mas tudo isto é transitório como nossa existência. Cedo ou tarde, voluntária ou involuntariamente, aprenderemos o valor do desapego e é melhor, bem melhor, que seja um aprendizado guiado por vontade própria e não talhado pelas penas de duras experiências.
Por: Silvia Lúcia, psicóloga
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