Sentada numa cadeira simples de sua casa humilde, ela é apenas uma mulher tentando fazer o seu melhor, buscando dividir o tempo entre trabalho e família, entre contas e calendários, rezando por um melhor marido, lutando por um melhor emprego, sonhando com um melhor armário.
Apenas uma mulher...
Crônica assinada por JU Blasina
- E-mail: jrblasina@yahoo.com.br
Como se alguma mulher no mundo fosse “apenas” alguma coisa.
Ela é mãe, é filha, é amante, é amiga, é irmã. Ela é mulher.
Mais tarde, deitada na cama que divide com as filhas, ela pensa no futuro.
Não somente no seu, mas no futuro das mulheres que ainda não nasceram.
No futuro de suas filhas e das filhas de suas filhas.
Num futuro distante, bem distante da sua triste realidade.
Amanhã será um dia importante, um dia daqueles que exigem coragem, toda a coragem que puder reunir, e ela sabe onde encontrá-la.
Com o sono roubado pela ansiedade, ela deixa a cama pé por pé, rumo as suas armas mais letais: esmaltes, batons e bobs — parecem objetos inofensivos, mas como mulher ela sabe reconhecer o poder que eles trazem.
Prepara-se para a guerra, se sente invencível e mal percebe o amanhã chegar antes do desenrolar do último cacho.
Não há tempo para delongas, não há muito para o café, mas sempre há um último olhar em seu maior tesouro: as filhas, que dormem seguras na cama desconfortável.
Pede a Deus que esteja com elas na sua ausência — o que, graças às tantas horas de trabalho, tem sido mais freqüente do que gostaria de admitir. Se ao menos fosse melhor recompensada, poderia dar a elas uma cama melhor, uma vida melhor, um futuro melhor.
Mas por hora, tudo que pode lhes dar é um breve beijo de despedida.
Mas hoje, ah...
Hoje tudo vai mudar!
Manifestarão seu descontentamento com as deploráveis condições de trabalho, com o salário injusto, com a excessiva carga horária, com a proibição ao voto, com tantas coisas...
Se ao menos uma delas for ouvida, serão vitoriosas!
Em seus planos tudo parecia perfeito, mas a realidade é sempre imprevisível.
Alguns chamam de destino, outros, de fatalidade, mas a mulher trancada naquela fábrica chamou de fracasso. Ela verifica novamente as portas na esperança tola de que a força de vontade possa aportar-lhes uma saída, mas não...
Para seu desespero, todas as portas parecem trancadas.
Neste momento, ela sabe que é o fim do caminho, todas elas sabem e talvez muitas já antes soubessem, porém, ainda assim precisavam lutar, valia a pena tentar...
O que ela não sabe é que, junto com as cento e trinta outras mulheres que sucumbiram àquele incêndio, num fatídico 8 de março, ela acabava de abrir a mais importante de todas as portas.
Uma porta por onde os sonhos ousam atravessar.
Uma porta, através da qual ela poderá passar milhares e milhares de vezes, em outro tempo, em outra vida, em outro corpo, na força e na liberdade que habita a alma de cada mulher.
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