9 de outubro de 2010
O bilhete literário
Na parede, o bilhete, congelado no tempo.
Ela lembra o momento, o exato momento em que o viu – ninguém esquece o começo do fim. Algo assim, não passa em branco, até as memórias tem cor. E na grandiosidade daquele pequeno instante, nem mesmo o bilhete era branco:
Post it amarelo – impossível ignorá-lo! E ela bem que tentou; por cinco minutos ou cinqüenta anos, permaneceu ali, em pé, olhando-o fixamente, sem reação... O amarelo “sinalizador de agonia”’ prendeu toda a sua atenção, mas afinal, essa era a intenção.
Ler ou não ler? Eis a questão. Post it amarelo escrito à mão.
Muita cor pra pouco papel. Muito papel pra poucas palavras. Muitas palavras pra pouco sentido. Muito sentido pra pouca coragem. Muita coragem pra ler – o tal bilhete:
“Querida, fui comprar cigarros”
Ela leu uma única vez e as palavras ecoaram em sua cabeça – zunido, tontura, angústia, amargura. Com certeza, o bilhete mais literário que alguém já produziu!
Um paradoxo: algo assim, tão banal, causar estranhamento total? Nunca antes existiu.
Lágrimas rolavam de seus olhos secos. Ela permanecia imóvel, exceto pelos movimentos autônomos de seu corpo – o tremer, respirar, o doer, repensar. Dias se passaram até que ela à rua saiu. Conduzida não gentilmente por homens de branco. Foi posta num casaco branco, num carro branco. A mente, também em branco, exceto pelo bilhete amarelo.
Já era tarde, muito tarde quando ela enfim falou. Mexeu os lábios, emudecidos pelo tempo – mal lembrava como fazê-lo! A voz, muito fraca. A face, opaca. Mas a memória, não: ela vibrava e emanava cores, formas, cheiros... A memória doía em nuances, relances e tons.
E ali, naquele lugar tão cinza, repleto de gente tão triste, ora branca, ora pálida, ali, ninguém ligava ou recordava o fato. Perdidos em seus próprios pensamentos carregados de pesares, ninguém sequer a ouviu ou bem entendeu o porquê, mas foi ao ver um cigarro aceso, a chama amarela caindo em brasa, que ela murmurou baixinho:
“Mas ele nem fumava...”
Por Ju Blasina
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