Por Bruno Z. Kairalla
Fotos: Arquivo
Pessoal/Divulgação
"Toda dor pode ser suportada se
sobre ela puder ser contada uma história".
Mesmo desconhecendo
a citação um dia expressada pela filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975),
foi desta forma que a papareia DENISE BONDAN DE MEIRELLES LEITE decidiu
explorar as emoções vividas ao lado do primogênito, Leonardo - ao
escrever e recentemente lançar no eixo RIO-SP, o livro “Anjo Desgarrado -
Bastidores de uma vida abençoada” – que na próxima sexta-feira, 02 de
dezembro, chega por aqui.
O lançamento ocorre no Sobrado dos Azulejos. Em
janeiro, a autora também participará da Feira do Livro da Furg, no
Cassino, e depois segue com ele para Portugal.
A obra de 254
páginas descreve a trajetória do nascimento de Leo à conturbada e dramática
descoberta da neuropatia de seu filho – falecido aos 28 anos, no dia 02 de
agosto de 2011. Leo foi vítima da sua cardiopatia e, como pontua a sua mãe, “de
um plano maior do universo”.
O primeiro
livro da escritora conduz os leitores a um passeio emocionado, entretanto, isento
de cores dramáticas e de pieguice, através das muitas histórias que colecionou
ao lado dele. Dos primeiros passos ao seu conturbado diagnóstico, a história do
anjo polaco é alinhavada por ela, sempre com graça e lentes de otimismo.
Formada em
Letras pela FURG, onde trabalhou como tradutora e revisora linguística, Denise residiu
na cidade até os seus 23 anos. Casada, deu início a uma vida de mudanças. Após
viver os últimos doze anos no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo, onde vive
atualmente com o marido, o filho Alexandre, de 24 anos, e seus animais de
estimação, dedicando-se também às suas outras paixões: a literatura, a pintura
e os animais abandonados.
Na entrevista
que se segue, gentilmente concedida via email, Denise comenta com sinceridade sobre
a sorte de um dia ter recebido Leo em sua vida. No momento, enquanto adianta o
seu segundo livro, com poesias e crônicas poéticas, a sua expectativa é o retorno
à cidade em que obteve parte de sua formação. “Que bom saber que Leonardo vai
renascer no coração dos rio-grandinos, agora, através deste livro!”, celebra
ela.
ENTREVISTA
“...vou rasgar minhas certezas,
mergulhar nos meus abismos, encarar minhas fragilidades, desnudar-me, trocar de
pele, renovar minha essência e, finalmente, repartir meu olhar e meu anjo Leo
com os outros...” [trecho de
apresentação do livro]
Mulher Interativa - Qual foi o maior
aprendizado que o Leo te ofereceu enquanto pessoa?
Denise - Sem dúvida,
a constatação de que precisamos de tão pouco para sermos felizes. Leonardo
vivia alegre. Sua maior felicidade era estar perto de nós, em casa, na sua
rede, no quarto com o seu baú de brinquedos, à mesa da cozinha, de barriguinha
cheia ou esperando enquanto os pratos eram preparados... Prazeres simples! Leo
nunca articulou uma só palavra, nunca fez um só trabalhinho de colégio sozinho;
desprovido de intelectualidade como a conhecemos, foi brilhante professor do
desapego, pois desprezava e até destruía objetos de valor com a tranquilidade
dos inocentes e sábios.
Mulher - Escrever o livro também lhe
serviu como uma terapia?
Denise - O livro
brotou sem esforço, fruto de uma necessidade premente de nascer de mim, sem
nenhuma premeditação ou expectativa de
minha parte. Foi assustadoramente catártico. Nunca fiz análise ou qualquer
outro tipo de terapia, mas acredito que escrevê-lo equivaleu à anos em divãs de analistas. Ao descrever a nossa vida com Leo, espantada descobri que
me descobria. Era como se estivesse me olhando de fora de mim mesma e me vendo
– de fato –pela primeira vez. De
repente, toda a minha história, todos os perrengues e situações surreais por
que passamos começou a fazer sentido. As peças do quebra-cabeça, enfim,
encaixavam-se.
Mulher - O que deixava ele mais feliz e
o que o deixava mais inquieto?
Denise - Leo adorava
doces. Minha casa era uma confeitaria 24 horas, sempre abastecida de bolos,
arroz de leite, sagus, doces de abóbora, de batata... Um martírio. Leo era uma
boa desculpa ambulante para uma mãe que não “podia” seguir com sucesso sua
dieta. Também era fascinado pela água, por andar de carro e por manusear (leia-se: quase sempre destruir) objetos
metálicos e plásticos ou papéis brilhantes. Não gostava de trocar as fraldas e
ficava tremendamente irritado quando os “brinquedos”, por ele escolhidos, lhes
eram retirados.
Mulher - O que é "comum" a
todos os pais de filhos especiais?
Denise - A angústia do
“amanhã”. A incerteza quanto ao que vai ser da vida desses filhos especiais se
estes sobreviverem a eles. A quem ficará o encargo de suprir suas necessidades
vitais? Terá esta outra pessoa
“incumbida” condições financeiras, psicológicas e emocionais de lidar com seres
tão delicados e complexos?
Mulher - Há famílias que abdicam dos
cuidados e levam seus filhos especiais para residir em clínicas. Como você
avalia este tipo de atitude e se você acreditou que, em algum momento, não
conseguiria cuidá-lo?
Denise - Existe uma
enormidade de casos: há filhos especiais com diferentes graus de
comprometimento e, da mesma forma, pais com estruturas emocionais quase tão
complexas quanto às dos próprios filhos. A condição sócio-cultural-econômica é
outro fator pertinente e determinante nesta questão. Não há como julgar se um
pai ou uma mãe que no seu desespero não consegue lidar com seu filho e opta por
uma clínica. Seria simplista e arrogante fazê-lo.
Tive momentos
de fraqueza, obviamente, pois o cansaço foi inevitável em horas críticas. Os
questionamentos se atiram à nossa frente e há que se rapar toda a coragem,
sabedoria e discernimento do fundo das nossas almas nestes momentos de confusão
e extrema fadiga física e mental. Meu marido foi sempre um grande “amparador”
quando precisei... Um ombro valente, indispensável.
Mulher - Quais são os mitos por trás do
autismo e quando exatamente você descobriu que seu filho tinha?
Denise - É preciso
esclarecer aqui: Leonardo nunca teve um diagnóstico preciso e até seus últimos
dias, quando isto já nem era mais tão importante, houve divergência de opiniões
a respeito da sua “moléstia”. Alguns neurologistas afirmaram que Leo era mesmo
um autista, outros que ele possuía uma encefalopatia qualquer, com retardo
mental severo. Descobri, ao longo do tempo, que
a sabedoria humana ainda não é capaz de muita coisa. Leo foi normal
para nós até um ano de idade, quando a investigação do seu “mal” começou.
Denise - Não o defino.
Não sei e nunca saberei. Há muito a se descobrir, um longo caminho a ser
percorrido. Só sei o que todos sabem, que há
uma grande dificuldade ou incapacidade de comunicação do ser autista com
o mundo exterior. Talvez apenas não saibamos como ler ou decifrar estes humanos
maravilhosos que vivem enclausurados num mundo, quiçá, melhor do que o nosso.
Mulher - Durante sua trajetória, como
você observou a postura da sociedade na convivência com ele? Há ainda um
preconceito de forma "velado"?
Denise - Leo, de modo
geral, foi bem aceito pela sociedade, mas tenho ciência de que em grande parte
foi assim porque ele era uma pessoa privilegiada fisicamente. Pudemos, ao longo
dos seus 28 anos, observar muitas situações em que o preconceito veio de forma
velada. É reconfortante vislumbrar que a
sociedade aos poucos se abre para a aceitação e a inclusão de “outras formas de vida “, do diferente... E
isto é bárbaro, mas comprovamos também que SIM, há ainda muita desinformação,
ignorância mesmo do assunto. Quando eu falava que tínhamos um filho especial,
logo vinha a pergunta: “ele é Down?” .
Mulher - Qual a mensagem que você
passaria para um pai que acaba de descobrir o autismo de seu filho?
Denise - Jamais
diria: "Deus só dá o fardo a quem o possa suportar!". Muitos não
aguentam o fardo e esmorecem. Mas diria
que, se os pais estiverem de alma aberta
para a novidade de vida, podem considerar-se abençoados por terem gerado um
professor espetacular desta matéria.
Mulher – Como foi a escolha do nome do
livro?
Denise - O nome caiu-me
no colo a caminho da primeira encadernação caseira numa gráfica ao lado de
casa, no Rio de Janeiro. Precisava nomear aquelas folhas brancas antes de
chegar lá. Pedi aos anjos que me assoprassem um título provisório bonito. E
pronto! Num insight angelical o ANJO DESGARRADO nasceu... E o nome ficou. Afinal,
Leonardo, tinha aparência e trejeitos de anjo sapeca e como vivia na terra, estava,
certamente, desgarrado do seu rebanho.
Mulher - Qual o trecho/capítulo que
você considera mais especial?
Denise - Gosto muito
do “Canto do Autista”, apresentado na abertura do livro... Pareceu-me uma
mensagem ditada por seres que vivem
dentro de suas redomas. A repercussão tem sido esplêndida e desconfio que tem
anjo por detrás disto (risos)
Mulher – Do que sente falta em Rio
Grande?
Denise - Da
guria que deixei perdida nos cantos da cidade e que não sabia ainda como a vida
fora da bolsa do canguru-mãe podia ser enriquecedora, porém tão difícil. E,
logicamente, de um bom teatro e cinema, enfim, de uma vida cultural mais
expressiva.
Mulher - Qual a linha de composição dos
seus quadros e o que eles revelam de você?
Denise - Não tenho uma
linha definida, embora goste muito do estilo impressionista e
pós-impressionista, mas gosto sobremaneira de temas étnicos, na verdade, de um
novo étnico, ou seja, menos folclórico. O multicolorido das minhas telas
revelam as centenas de mulheres que vivem brigando por espaço dentro de mim .
Mulher - Você também se dedica ao
cuidado de animais abandonados. Além disso, como é sua rotina atual?
Denise -
Nesta minha nova fase me definiria como uma “colaboradora”, menos que uma
voluntária, como costumava ser no Rio, onde era atuante. Ainda ajudo na
divulgação da causa e tenho “afilhados”, frutos do descaso e do descarte
humanos, que são mantidos em abrigos porque ainda não tiveram a sorte de serem
adotados. Nós, seres “racionais” ainda temos muito que melhorar e aprender com
os animais. Minha rotina ainda está meio bagunçada, mas compõe-se basicamente
de escrever, cuidar do lar e ler muito.
>>> SERVIÇO
- Lançamento do livro “Anjo Desgarrado
– Bastidores de uma vida abençoada”
- Autora: Denise Bondan
- Editora: Litteris
- Páginas: 254
- Quando: sexta-feira, 02/12
- Horário: 20h
- Local: Sobrado dos Azulejos (rua
Marechal Floriano, 103)
- Informações: (53) 3035-5294
- Blog de Denise: www.debondan.wordpress.com
“Usando
de instrumentos imperfeitos, de poucas habilidades e muitos esforços, tento
tornar minha família possível... Superar minhas mediocridades e inabilidades
com toda a força da minha alma... Para finalmente entender que preciso apenas
sucumbir à imposição do Universo” – trecho de apresentação do livro.
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