Ainda falta uma semana, mas o Mulher Interativa antecipa a celebração de mais um Dia Internacional da Mulher, brindando seus leitores com uma história no mínimo marcante e muito especial. A trajetória de Neiva inaugura com chave de ouro as reportagens especiais e as novidades que o Mulher apresenta no decorrer desse próximo mês.
Parece história de novela, mas não é. No mínimo, inspiraria qualquer autor de folhetim. Também renderia uma bela história para ser exibida no “Lar Doce Lar”, do programa Caldeirão do Huck.
A trajetória desta família prova que na vida sempre há lugar a quem por ela luta dia após dia. Por tudo o que já viveu - e ainda vive, Neiva Marilaine Rohde Martins, mesmo só com 44 anos, merece as condecorações de uma guerreira.
Escrito por Bruno Zanini Kairalla
- Fotos-reportagem: Bruno Kairalla
- Sugestões: bruno.kairalla@gmail.com
- Editora: Rosane Leiria Ávila
Natural de Três Passos (RS), Neiva chegou com a família em Rio Grande quando tinha apenas 12 anos. A terceira de um total de quatro irmãos, veio para acompanhar seu pai que, na época desempregado, conseguiu trabalho numa das antigas firmas portuárias da cidade.
Atrasada nos estudos, aos 14 anos, não tinha material suficiente para usar na escola. Foi então que decidiu trabalhar. Indicada pelos irmãos, empregou-se na fábrica de peixes, Pescal.
Aos 17, começou a trabalhar como emprega doméstica em casas de família e, um ano depois, enfrentou a internação e, logo após, o falecimento de seu pai.
Próximo de seus 21, apaixonou-se por um jovem de 17 anos. Engravidou. Insegura por todo o contexto da situação, escondeu a barriga enquanto pôde. Quando decidiu contar foi como bem previa: “a criança ou eu”. “A criança é minha”, respondeu ela, sem nem pestanejar.
Durante os últimos meses de gestação parou de trabalhar. Quando seu filho, Jessé Rohde completou seis meses, enfrentou uma série de dificuldades que a levaram pedir ajuda para um de seus irmãos.
Nesse mesmo período, trabalhou para um estancieiro, limpando com fortes produtos químicos, as crinas de cavalos. Por conta disso, deixava seu filho sob os cuidados da família, que não se mostrava nem um pouco disposta.
Enquanto pôde, Neiva aturou as queixas, as intrigas e reclamações. “Minha cunhada não me queria lá dentro. Deixava claro isto. Sumiam as coisas de dentro de casa e ela dava a entender que eu estava vendendo o que era deles”, recorda.
Incomodada, sentindo que estava perturbando na casa do irmão, Neiva não parou para pensar. Juntou o pouco que tinha, pegou o filho com ainda meses de vida e foi para debaixo dos eucaliptos da Assis Brasil. Vivendo ao relento durante os dias e as noites, enfrentando sol e chuva, por ali residiu durante intermináveis seis meses.
No abrigo, Neiva dividia seu espaço e também as noites com viciados em todos os tipos de entorpecentes, inclusive, traficantes. “Para ser bem sincera, quem mais me dava força era esse pessoal. Uns me davam o que comer, enquanto outros arrumavam uns plásticos, panos e caixas para poder colocar as minhas coisas”, conta.
A água, ela conseguia com moradores, nos arredores. Um deles, seu Antônio, guarda do local e que não sabia onde era o seu refúgio, lhe conseguia o leite para dar de alimento ao filho.
“Durante o dia, eu tapava todas as minhas coisas com um pano e pedras por cima e saía com o meu filho para caminhar. Voltava para os eucaliptos só para dormir, à noite. Foi uma das fases mais difíceis que enfrentei”, lembra. E ela ainda não sabia ainda que Jessé foi acometido por uma grave doença no dia de seu nascimento.
Para sair da situação em que se encontrava, Neiva contou com a ajuda especial de um antigo vizinho, o seu Tito, que na época tinha 78 anos. “Ele conseguiu uma casa bem modesta e simples, na Henrique Pancada, que tinha apenas uma peça e uma patente”, acrescenta. No local, Neiva ficou por quase dois anos. Saiu porque mais uma vez sentiu que estava “estorvando” alguém.
“Ele penhorava a carteira dele numa venda para poder comprar leite para o meu filho. Ele recebia apenas um salário. Aquilo me chocava”, lamenta. Neiva comentou com uma amiga que tinha necessidade de se sentir útil e que gostaria de poder morar e trabalhar para alguém. A amiga indicou. E é neste ponto que entra outra personagem dessa história.
Há 19 anos, Neiva viu pela primeira vez Paulo Luiz Martins, hoje com 60. Na época, Paulo morava e trabalhava na região do Taim e precisava de alguém que cuidasse de sua filha pequena. Neiva foi morar com Paulo. A ex-mulher de Paulo soube da existência de Neiva, e proibiu a filha de morar com o pai.
“Quando soube disso, fiquei desesperada, pensei que ia voltar à estaca zero de novo”, temeu ela na época, que ainda não via Paulo como o homem da sua vida. “Na verdade, nem pensava nisso. Estava tão traumatizada com tudo o que aconteceu no meu primeiro relacionamento que eu não queria passar por nada daquilo de novo”, expressa ela.
“Ela também não era o meu tipo de mulher. Mas, depois de um tempo, chegou um momento em que sentamos e conversamos. Disse a ela que, ao menos, tínhamos que tentar para ver se daria certo e até hoje estou esperando essa resposta dela”, brinca seu Paulo.
Na verdade, a resposta dessa tentativa chegou dois anos depois, com o nascimento de Jéssica Marisa, hoje com 15 anos. Um pouco antes, Neiva percebeu que algo estranho acometia o filho, Jessé.
“Desde que ele nasceu, ele chorava muito, mas não era visível o problema. Só depois, o médico explicou que houve complicações durante o nascimento e que ele tinha paralisia cerebral. A princípio, Jessé não tinha movimento e coordenação nos braços e nas pernas...
....Com o tratamento, revertemos essa situação, mas a fala está até hoje comprometida. Do Taim, saía com ele nos braços, caminhava quatro quilômetros para chegar na faixa, pegar o ônibus e vir para Rio Grande fazer apenas 20 minutos de fisioterapia”, explana.
Jéssica, filha do casal, também passa por tratamento, depois que foi diagnosticada dislexia (incapacidade do aprendizado). Hoje, Jéssica comemora o reinício das aulas, agora na 6ª série.
Após o nascimento de Jéssica, as adversidades retornariam a bater na porta do casal. “Paulo foi demitido e tivemos que voltar sem nada, com uma mão na frente e outra atrás, sem casa, sem nada”, recorda Neiva. Na época, a única renda que eles contavam era com os R$ 140,00 que Jessé recebia do governo para manter o tratamento.
“Cem reais pagava o aluguel da casa em que estávamos e, com os outros 40, a gente se alimentava. Paulo não conseguia serviço em lugar nenhum e começou a ir para o Parque Marinha bater de casa em casa para pedir alimentos”, relata Neiva.
Por uma cunhada da irmã de Neiva, o casal soube de um terreno quando o bairro Cidade de Águeda, ainda era todo tomado por morros de areia e nem era conhecido por esse nome. Há 13 anos nesta localidade, eles foram uns dos primeiros moradores.
A casa, toda em madeira localizada aos fundos, eles apelidaram carinhosamente de “nosso chalezinho”. Na área da frente, e sem nunca terem lidado com construção, os dois são responsáveis por, com o próprio suor, levantar cada tijolo, numa obra de seis peças que, infelizmente, ainda não conta com prazo garantido de conclusão.
“Tivemos que parar um pouco, pois a saúde de Paulo está debilitada. Ele sofre de diabete e também possui problemas no coração”, explica Neiva. Efetivamente, o terreno ainda não está regularizado e não está no nome deles.
Entretanto, no local, eles pagam água, luz e telefone. “Esse é o pedacinho que nós conseguimos, que Deus nos deu e é aqui que nós vamos ficar”, diz Neiva, cujo maior sonho é ver um dia a casa construída e mobiliada. Seguidores da Igreja Adventista, os dois estão casados há 10 anos.
Figurinhas para lá de carimbadas, os dois seguem a profissão que teve início há cinco anos. Na verdade, tudo começou com Paulo. Ele é quem tomou a iniciativa de ser um dos guardadores de carro na frente de uma das festas mais tradicionais da cidade, o bar Tigrão.
Neiva entrou nessa por acaso, quando Paulo ficou hospitalizado por alguns dias. “Dependíamos disso. É o nosso sustento e de onde retiramos o nosso alimento. Não podíamos ficar sem trabalhar. Foi aí que, durante o dia, passava com ele no hospital, cuidava das crianças e, a noite, comecei a substituí-lo no Tigrão”, comenta.
Depois que deixou o hospital, em fevereiro de 2007, Paulo, ao voltar para o trabalho, apenas ouviu: “Eu vou junto. Da porta pra cá é o meu lado, da porta para o outro lado é o teu”, impôs Neiva ao marido. Sobre a “profissão”, Neiva diz que tomou gosto.
“Gosto demais do que faço. Se tornou algo prazeroso”, explica. Dos piores problemas que enfrentam durante a noite, os furtos não configuram o primeiro lugar da lista. “Esses são fáceis de notar e evitar”, fala. O pior, na visão dos dois, é ter que aturar a vingança com as brigas conjugais.
“O que mais acontece é ex-mulher ou ex-marido querer se vingar e estragar o carro do ex-companheiro. Quebram sinaleiras, vidros, arranham, furam pneu, fazem de tudo. Às vezes, não tem nem como evitar e, em outras, nem notamos de tão rápido ou escondido que fazem”, relatam.
“E o pior é que para os donos a gente ainda leva a culpa”, dizem. Mas também já passaram por bons apertos, como em outubro do ano passado, em que Paulo teve uma arma apontada para a sua cabeça. “Levaram o pouco que tínhamos feito durante a noite. Sobraram só as moedas. Mas ainda bem que com os carros não fizeram nada”, comenta Paulo.
Fora isso, os dois se divertem com os bêbados da noite, riem dos porres alheios e até tentam evitar quando ocorrem brigas. Alta, forte e de origem alemã, Neiva concorda que suas atribuições ajudam na hora de manter o respeito. Mas, mesmo assim, muitas vezes tem que ouvir as piadinhas e até recusar propostas indecentes. “Por outro lado, muitos se tornam fregueses e até amigos, que saem das festas e param para conversar conosco”, discorre.
Inverno ou verão, na cidade ou no Cassino, os dois estão sempre por lá e comentam que juntos, durante uma noite, a média dos ganhos varia entre R$ 50 ou 70 reais. Sobre quem consegue um desempenho melhor durante a noite, a proeza é de Neiva. “Eu consigo tirar R$ 50, quase sempre. Já Paulo tem noites que consegue só R$ 10”, aponta.
No final da entrevista, convidamos dona Neiva e sua família para ir conosco até o local em que ficou por meses ao relento. Ao chegarmos lá, ela e o filho, Jessé, saem na frente. Com passos firmes e sem se equivocar, Neiva percorre a trilha e segue em direção ao eucalipto principal que lhe ofereceu estrutura e suporte.
Assim que chega nele, toca-o, fica pensativa, como se estivesse visitando ou visualizando todas as suas velhas lembranças. Depois de alguns minutos, quebra o silêncio:
- Nunca mais vim até aqui. Quando passava por essa região, nem olhava. Tinha muito medo de um dia ter que precisar voltar para cá. Confesso que pensei até em me matar e só não fiz isso por causa do meu filho, que foi a minha segurança, a minha razão de vida -, pontua ela.
Por fim, emocionada, Neiva narra as angústias e os momentos de desespero pelo qual passou. “Rezava muito. Pedia para Deus cuidar de mim e dar-me forças para zelar pelo meu filho”, conclui ela, ao se abraçar em Jessé, com as pernas bambas e trêmulas.
Paulo, conhecedor de todas as fases de sua mulher, ao visitar o local pela primeira vez, fica impressionado. “Só imaginava a cena, mas nunca tinha visto o local. Realmente, ela foi uma guerreira”, finaliza.