1 de abril de 2010

Dual



Um... Dois... Um... Dois... Os dedos tamborilavam impacientes na mesa, enquanto a cabeça saía solta pelo mundo. Queria fazer tanta coisa, justamente agora que se sentia no fim...
- Como assim, no fim? Indagou-lhe a amiga sem entender como alguém com 38 anos, bonita, vida confortável, podia se sentir acabada. Ou partindo desta para uma melhor. Alias, seria melhor mesmo? Afinal, quase todos são pecadores e o destino certo é o Inferno.
- Claro, sua boba. O Inferno não é num lugar longínquo como sempre a Igreja nos quis fazer acreditar. É aqui mesmo, na Terra. Nesta terra que meus olhos ardem de ver, retrucou.
Estava enjoada do noticiário diário: traições, guerras, bombas, terremotos, assassinatos, abusos de crianças, violência contra os animais, poluição, destruição, degradação do meio ambiente, maracutaias e sacanagens políticas... Sentia náuseas por causa de tanta coisa sem sentido... O medo e a incerteza batendo todo dia no vidro do carro quando saía...
- Ah, não. Você só está olhando para coisas ruins. O Planeta é mais. É luz, é beleza, é perfeito nos detalhes da natureza. Caprichoso no som das florestas ou no murmúrio das ondas dos oceanos argumentou a outra.
Mas ela fincou pé na assertiva.
- As florestas estão sendo derrubadas, os animais silvestres mortos ou traficados, as madeireiras ilegais deixam grandes extensões áridas na Amazônia. O governo agora quer fazer a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu que ameaça afetar o rio Xingú e destruir grandes territórios dos índios caiapós e ribeirinhos. Será que é necessário como ele diz ser, mesmo? De verdade? Você sabe que a verdade não chega até nós, pobres eleitores e cidadãos comuns. Fica desfigurada pelos caminhos tortuosos e manipulados que percorre.
Meu Deus, quanto pessimismo! O que você queria? A população dobrou nas últimas três décadas. Então, são necessários investimentos para grandes massas populacionais, retrucou a amiga.
Um... Dois... Três... Um... Dois... Três... Agora seus dedos estavam mais nervosos ainda. Encarou a outra com medo de se descontrolar e, a qualquer instante, pular no seu pescoço.
Mas, ao invés disso, desviou o olhar. E foi então que viu sua imagem refletida na vitrine da mega loja no passeio do shopping. Ela estava sentada numa dessas cafeterias no meio dos corredores. Sentiu estranheza e um profundo estremecimento. Aquela não era ela. A imagem era de uma senhora de 80 ou mais anos, já curvada pelo tempo. Cabelos brancos, rugas na face, mãos deformadas pela artrite.
Estendeu o olhar e procurou a imagem da amiga sentada à sua frente. De novo, outro susto. Aquela sim era ela. Estaria ficando louca?
Olhou para frente, buscou o olhar da amiga e lhe suplicou que olhasse para a vitrine.
- O que você vê? O que vê? - perguntou aflita.
Então, depois de infindáveis instantes a amiga voltou a cabeça lentamente para a direção dela e lhe disse:
- Eu vi o tempo.

Rosane Leiria Ávila
http://palavras-versus-palavras.blogspot.com/

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