21 de dezembro de 2009

CAPA: “A comida é um momento”

Dona Eva Fuentes é considerada uma coordenadora “coringa” dentro do Comitê de Ação da Cidadania porque está sempre presente. Para ela, a comida é um momento: um momento especial para as famílias carentes que receberão as doações da 17ª Campanha Natal Sem Fome”no próximo dia 24. Na entidade desde 1993, ela reforça que é preciso resgatar a cidadania das pessoas através de muito trabalho


* Escrito por Bruno Zanini Kairalla - bruno.kairalla@gmail.com
* Editora Rosane Leiria Ávila - rosane.jornalagora@gmail.com
* Fotos: Bruno Kairalla/ja

Neste exato momento, enquanto você começa a ler esse texto, centenas de famílias estão recebendo em suas casas, não a aguardada visita do Papai Noel, mas sim aquilo que elas mais precisam para ter direito à vida: alimento.

Domingo, dia 20, se encerra a 17ª edição da campanha “Natal Sem Fome”, uma das principais ações promovidas pelo Comitê de Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida do Rio Grande. E nesta edição especial de Natal do Mulher, queremos, além de desejar a todos os nossos leitores uma noite perfeita de Natal, fazer um convite à reflexão.


Iniciada no último dia 24, a campanha arrecadou mais de 5 mil toneladas de alimentos. Parece um número considerável, mas segundo uma das sete coordenadoras do Comitê, Eva Garcia Fuentes, foi bem menos do que no ano passado e por esta razão o número de famílias contempladas neste ano pela iniciativa será inferior ao de 2008.


“No ano passado, conseguimos atingir cerca de 580 famílias. Neste ano, infelizmente, não temos como chegar neste número”, lamenta ela. Numa comparação com os anos anteriores, a coordenadora acrescenta que antes era possível abranger todos os bairros mais carentes da cidade. Hoje, a realidade é outra.


Informações que comprovamos na reportagem publicada neste mesmo caderno nos dias 20 e 21 de novembro de 2004. Na matéria de capa assinada pela jornalista e editora do Mulher, Rosane Leiria Ávila, a 12ª edição da campanha tinha por meta ultrapassar as 38 mil toneladas arrecadadas no ano anterior, em 2003, e que beneficiaram cerca de 2.680 famílias.

Na mesma reportagem, dona Eva declarava: “Aumentou o número de famílias. Isso significa que em 2004 teremos que arrecadar entre 40 e 42 toneladas de alimentos”. Mesmo com o aumento da população, e com isso também o da miséria, os números do passado parecem não corresponder com o atual cenário de expectativas econômicas vivida atualmente pelo Município.

Como funciona...


O sistema de arrecadações do Natal Sem Fome funciona da seguinte forma: integrantes do comitê e seus voluntários se posicionam na entrada dos supermercados e solicitam a colaboração dos consumidores. Cada pessoa é convidada a doar um quilo de alimento não-perecível para a campanha, cujo objetivo é proporcionar um Natal melhor a famílias carentes.

Eva fala que grande parte dos voluntários são as próprias pessoas beneficiadas pela iniciativa. Assim como os demais contemplados, os voluntários são cadastrados no Comitê. “Hoje contamos com aproximadamente 100 voluntários na entidade”, aponta Eva.


Antes de irem para os supermercados, eles são orientados a como se apresentar, pedir e agradecer a colaboração, mesmo para quem se recusa a fazê-la. E, mesmo assim, muitos não escapam da falta de paciência ou dos palavrões dos consumidores.

Neste ano, o 17ª Natal Sem Fome foi inaugurado através de outra atividade destaque da entidade: a Mesa da Partilha, realizada sempre no interior da Praça Tamandaré, em que é montada no local uma mesa com frutas, pães e cucas, entre outros alimentos que são então partilhados com a comunidade.

“Esse gesto simboliza a fartura, o amor, a união, o respeito e a solidariedade com irmãos que necessitam”, declarou Eva, na tarde do dia 24 de novembro. Antes da partilha, os presentes são convidados a darem as mãos e a fazer uma oração. Na última edição, o frei João Osmar d'Ávila fez a bênção aos alimentos, que são produzidos pelos próprios voluntários do Comitê.


Além disso, as organizadoras ainda promovem no ano diferentes oficinas, cujo objetivo é oportunizar uma nova renda aos voluntários. “A comida é um momento. O resgate da cidadania não ocorre pela doação dos alimentos, mas, sim, com muito trabalho. Com ele, consegue-se buscar educação, saúde, respeito”, expõe Eva.

Na entidade, os voluntários aprendem técnicas sobre pinturas em vidro e em tecido, crochê, tricô, costura em geral e também gastronomia. “As pessoas aprendem a produzir para se colocarem no mercado. Não para enriquecer, mas para sobreviver”, salienta ela. Além das Feiras de Artesanato, o grupo reabriu recentemente o seu “brique da estação”. A sede do Comitê está situada na avenida Buarque de Macedo, ao lado do restaurante Galeto Caxias.

Guerreira

Sob o título de “Uma guerreira no combate à fome”, a reportagem do Mulher de 2004 contou um pouco da vida de dona Eva Fuentes. Por sua maior disponibilidade e no auge dos seus 71 anos, “ainda me sinto muito jovem”, Eva é considerada uma coordenadora “coringa” dentro do Comitê.

Isto porque sempre que possível ela está sempre presente dentro da entidade, da qual está inserida desde a sua fundação, em 1993. No total, as sete coordenadoras se revezam através de uma escala criada pelo grupo. No entanto, quando uma delas não pode comparecer, é dona Eva quem está lá presente, às vezes, até mesmo a partir das 6h30min. “O Comitê é uma universidade da vida. Aqui, se aprende muito”, define Eva.


Ex-presidente da Associação de Bairros da Vila Bernadeth, em que ensinou muita gente na localidade a adquirir uma nova renda, Eva conta o que não revelou em sua entrevista passada. Durante a vida, a elétrica senhora já trabalhou em fábricas de tecido e pesca e mantém o orgulho de já ter exercido no mínimo cinco tipos de “eiras”: “Já fui lavadeira, cozinheira, faxineira, costureira e tricoteira”, brinca ela, que depois de muito amanhecer confeccionando lindos vestidos de prenda, agora é pensionista.

Viúva há dois anos, Eva conta hoje com o apoio de seus cinco filhos e seis netos. Para ela, o Natal é uma data muito triste, pois não consegue deixar de pensar nas famílias que não contam com qualquer tipo de amparo. Pensamentos que fazem ela se sentir revestida por uma armadura.


“Já vivenciei muitas histórias de pobreza. No início, faziam-me muito mal. Deparava-me com famílias que dormiam no chão, entre a água e o lixo, e que não tinham mais esperança de vida. E do início desse meu trabalho até hoje, percebo que a miséria só tem aumentado”, lamenta Eva. O triste quadro só se reverte quando ela vê o sorriso estampado no rosto de uma criança que se enche de prazer por ganhar um brinquedo simples ou um pacote de biscoito.

A Casa das Sete Mulheres


Na casa da família Silva da Silva não há uma árvore de Natal enfeitada, aguardando o momento da ceia do dia 24. A chefe da família é Claudete Silva da Silva, uma das 100 voluntárias do Comitê de Ação da Cidadania.

Ao lado dos seus nove filhos, ela recebeu na sua casa a equipe do Mulher, a coordenadora Eva Fuentes e outra voluntária, dona Paulina Borges Leal, de 74 anos, vizinha de Claudete que, assim como Eva, acompanha o Comitê desde a sua fundação.

“Quando não estou trabalhando na reciclagem do lixo limpo, estou dentro do Comitê, arrecadando alimentos nos supermercados. Trabalhos que faço com muito amor, pois são gratificantes”, ressalta Paulina.


Dos noves filhos de Claudete, sete são mulheres e dois meninos. A mais velha tem 21 anos, enquanto o mais novo tem apenas 10 meses. Antes do nascimento do novo filho, Claudete trabalhava como faxineira em casas de família.

Agora a única renda vem da filha mais velha, que recentemente conseguiu emprego nos camelos da cidade. No Comitê, Claudete está há quatro anos. No local, ela ajuda a organizar as compras que serão repassadas às famílias que se encontram na sua mesma situação.

Dos filhos, ela é pai e mãe. Segundo ela, o marido há deixou há oito anos. Depois disso, ela revela com os olhos úmidos que já passou por situação em que não tinha nada o que servir aos seus filhos. Hoje, a única fonte de alimento vem do Comitê. Moradora do bairro Dom Bosquinho, seu maior sonho é arrumar a casa, que um dia já foi tomada por um incêndio.

“Nos dias de chuva, a água passa pelas paredes e a casa fica encharcada”, conta ela, que também quer muita saúde para os filhos. Na casa das sete mulheres, onde todos são colorados, o exemplo repassado é a educação. “Meus filhos sabem que, para não seguirem o meu exemplo, o compromisso mais importante da vida é o estudo”, conclui a chefe da família.

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