A proposta para a última e possivelmente a mais exigente reportagem para a "Série Mães Reais", foi clara, curta e objetiva:
- “Mães que não são mães”, e mesmo assim possuem o dom de gerar, preservar e estabelecer uma vida.
Tempo para uma reflexão e pela frente outra difícil missão:
Encontrar as novas protagonistas!
Para contribuir e facilitar o trabalho dos repórteres, a editora Rosane Leiria Ávila, ainda complementou a ideia lançada:
“Mães que a sociedade e a família impõe: As mulheres que são mães de seus maridos, mãe dos irmãos, mãe dos alunos, mãe dos pais quando estes ficam velhos e até mesmo mães dos amigos”.
Não foram por falta de tentativas!!!
De boca em boca, os repórteres Bruno Kairalla e Fernanda Miki foram colhendo as sugestões e indicações de suas fontes de informação.
Entretanto, as entrevistadas que se enquadravam no perfil solicitado – e nossa sociedade está cheia delas, todos nós sabemos disso -, não concordaram ou foram convencidas posteriormente por seus parceiros a não conceder ou publicar a entrevista.
Afinal, não é lá muito fácil um homem admitir publicamente a condição de filho de sua esposa, por mais que seja a mais leal verdade.
Uma verdade incontestável, quando se constata: “Se eu não lembro dos remédios, ele esquece completamente”.
Ou ainda: “Por conta dos nossos filhos, ele até me chama de “mãe” há anos. Sexo? Nem sei mais o que é isso”, risos.
E o que dizer da aposentada de 63 anos, que largou tudo em Santa Maria, separando-se de sua família para morar de novo com o pai, de 86.
“Não vejo meus filhos faz tempo. Meu marido e ele nunca se falaram depois de uma briga. Mas o que eu posso fazer? Se deixar ele aqui, quem vai cuidá-lo? Hoje, não sou só uma mãe para ele. Também sou o pai”
Para os repórteres, fica, então, apenas registrado na memória as declarações fantásticas, porém, vetadas, como o de uma senhora com quase 70 anos, que nunca teve filhos, mas dedicou a vida as dezenas de animais de estimação.
Entre gatos e cachorros, hoje, na sua casa, ela concentra cerca de 50. Mas esse número, segundo ela, já foi bem maior. Não, neste caso não foi alguém que vetou a publicação, mas sim uma sociedade que além de hipócrita, também é aproveitadora.
“Se eu conceder a entrevista, no outro dia minha casa está cheia de animais. Eles sabem que eu cuido, colocam aqui na minha porta e não querem nem saber. Só que acabo de sair do hospital e não tenho mais saúde para cuidar deles. Fico preocupada pois não sei o que será deles quando eu partir daqui”
O último animal deixado em frente a sua porta não data menos de uma semana.
Esta mesma senhora que também declarou:
“O amor que tenho por eles é como de mãe: incondicional. Sinto-me também muito amada por eles. É um amor totalmente diferente do humano. Enxerga-se no olho do animal. Com eles nunca me senti sozinha. A entrega é total, sem interesses. Dói muito quando um morre e por mais que sejam tantos, os reconheço só pela personalidade. Quando fico doente, eles adoecem junto comigo”
A série
Iniciada no último dia Dia das Mães, o Mulher Interativa apresentou a sua justificativa:
- Foi-se o tempo em que Maio era considerado o “Mês das Noivas”. Mas nem por isso deixou de ser um mês dedicado especialmente a elas: as mamães.
Enquanto as pesquisas apontam os meses de outubro e novembro como o grande campeão de vendas para o véu e a grinalda, Maio se tornou um mês sagrado, onde não só é celebrado um dia materno, como também é lembrado o Dia Nacional da Adoção [25 de maio].
Dividida em quatro reportagens, o nome da série “Mães Reais” foi criado na intenção de abordarmos não só o amor incondicional de uma mãe por seus filhos, mas evidenciar o seu lado mais humano, separando-as da figura divina, perfeita e intocável.
E quanto a este aspecto, as duas entrevistadas de hoje, Marilice e Marilei (abaixo), assim como todas as outras mulheres que passaram por aqui nestas quatro semanas, não só fecham a nossa série “com chave de ouro”, como também correspondem a principal proposta de nossas reportagens: contribuir para a reflexão de nossos leitores e a evolução de nossa sociedade.
Divino dom
Nove anos foi o tempo em que Marilice Oleiro Lopes levou para perceber que o papel de mãe nem sempre resulta da combinação de fatores genéticos ou biológicos.
Antes, porém, lidou com frustrações severas, não só pela ansiedade por gerar uma vida, como também pela cobrança social imposta para que isso tão logo ocorresse.
“Não nasci para ser mãe”, assumiu na época.
Feliz engano!
Com o tempo, Marilice descobriu que não só nasceu com esse dom divino e sagrado, como a cada dia se torna ainda mais tomada por ele, diante a qualquer nova decisão que emprega, seja em casa ou em seu trabalho.
Durante o processo de recolhimento e amadurecimento interno das ideias, a supervisora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC), confessa que quem engravidou primeiro foi seu grande cúmplice.
Foi ele, o marido - com quem está casada há 27 anos -, que sugeriu primeiro a adoção, isso numa época em que pouco se discutia o assunto.
Surpreendida pela proposta, Marilice confessa que jamais tinha cogitado a possibilidade.
Entretanto, a procura pela assistência social não tardaria.
Como ocorre numa gestação, foram necessários nove meses de espera para que o casal tivesse em mãos a guarda legal da primeira filha, na época com apenas 21 dias e hoje no auge dos 18 anos.
O gosto pela maternidade logo continuaria.
Com apenas nove dias, a segunda herdeira do casal, foi por eles concebida em menos de três anos da primeira. O dom materno se amplia no rosto de Marilice, quando ela afirma:
“Sou enlouquecida por elas”
Entre uma frase e outra dita perante a nossa equipe de reportagem, a supervisora, sem se dar conta, mostra o crescimento interno que obteve ao se referir a infância das filhas.
“Desde pequenas, sempre as deixei a par da realidade, seja contando uma história, ou falando abertamente sobre o assunto. Sempre mostrei a elas que mãe não é a que gera e sim aquela que está sempre por perto, dá afeto, zela, é companheira, amiga”, conta.
“Aprendi que quando se tem filhos, independente se biológico ou não, a gente imagina e idealiza mil coisas. Porém, por mais que se sonhe ou se planeje, eles crescem e seguem o seu próprio e natural caminho...
"A postura de mãe deve ser o de acolhimento e também o de encaminhamento para que consigam chegar equilibrados a fase adulta. Isto porque não somos os donos dos nossos filhos. Cabe a nós, então, o papel de mediadores e os orientadores de suas escolhas...
"Nós, pais, somos a base de uma educação e responsáveis por oferecer o conjunto de valores importantes à convivência humana; do contato e da troca de experiências”, reflete Marilice.
Tricô
O diálogo aberto, as risadas e brincadeiras, as conversas sérias ou o “tricô” rasgado com as filhas, são os momentos valorizados na casa da supervisora.
“Sempre estimulei muito esse lado humano nelas. Lembro que com a autorização de uma das diretoras, tive que levá-las comigo para uma escola com crianças carentes em que dava aula. A partir dali elas faziam questão de comemorar o aniversário ao lado dos colegas”, diz com orgulho.
Em outro ponto da entrevista, descobrimos o quanto as filhas possuem as mais fortes características de sua mãe. Marilice define a mais velha com uma postura mais centrada. Gaba-se ao ouvir na mesa do café, os debates travados por ela e pelo pai.
“Ela é mais racional. Tem uma postura ética de se admirar. Toda pela visão correta das coisas. Já a caçula é mais emotiva”, emblema Marilice.
E o repórter conclui: “Uma boa mistura sua, que no dia a dia precisa passear entre a razão e a emoção”. Pensativa, a supervisora sorri concordante.
Também no trabalho
A paixão de quem levou um tempo para entender o verdadeiro sentido do papel de mãe é revelada também no trabalho. Há 20 anos, Marilice começava a atuar na rede pública de Ensino. Trabalhou sete anos pela escola municipal Olavo Bilac, depois mais um ano em outra escola e desde 1997 está diretamente vinculada à SMEC.
Passou por alguns setores, foi assessora, diretora da unidade pedagógica e como supervisora tem a missão de zelar pelo pleno funcionamento pedagógico das 64 escolas da rede, em sintonia com pais, alunos e professores.
Com o mesmo orgulho de quem olha para trás e vê o reflexo de suas posturas inseridos no conjunto de valores de suas filhas, Marilice também lembra da sua participação na criação e desenvolvimento de projetos e programas, como o Centro de Formação Escola Viva, cujo o propósito é de atuar na inclusão de estudantes, jovens e adultos, em ações de cidadania através de oficinas de aprendizagem e capacitação no contraturno escolar.
Com um timbre de voz doce e suave, característicos, Marilice coordena quatro grandes equipes da SMEC e diz que também se sente mãe enquanto administra a sua vida profissional.
“Sinto-me um pouquinho mãe de cada projeto que a gente coloca, cada programa que a gente participou, escreveu, foi buscar financiamento, parceria. Sinto-me mãe quando atendo as necessidades da minha equipe, quando alguém se sente cansado ou precisa de ânimo...
"Ou quando me coloco no lugar de cada pai e mãe que senta aqui na minha frente para falar de qualquer problema ou quando uma direção escolar saí daqui com um problema resolvido ou pelo menos encaminhado. Enfim, sinto-me mãe quando me coloco no lugar da outra pessoa, quando exerço o meu papel de educadora”.
E finaliza:
“Na verdade, creio que todo mundo que é apaixonado pela área da educação tem esse sentimento de se sentir um pouco mãe, responsável pelo que faz. Um educador respeita e contribuí para o crescimento do próximo, oferece o seu máximo para que aquela pessoa tenha um futuro magnífico. Age servindo de exemplo para o seu próximo. Até porque não posso cobrar ética do outro, se eu assim não sou”.
Sem limites
À frente do “Centro Afro Xapanã Iemanjá”, Marilei Seixas Torma, 49 anos, é a mãe de santo “Leisa de Iemanjá”. Apesar do título que a religião lhe confere, Marilei garante que seu papel vai além de possuir uma ligação espiritual com seus filhos ou de ser e agir apenas como uma “mãe de santo” normal.
“Antes de ser mãe de santo sou amiga delas”, confirma. Diferente de muitas, ela se contenta com os 12 filhos que mantém no Centro Afro, localizado na garagem de sua residência, no bairro Getúlio Vargas e que segue as atividades espirituais da umbanda, cigana e nação.
Vivendo na religião desde os três primeiros meses de vida, por conta da fé de seus pais, Marilei aos poucos foi ganhando os seus “axés” e com a missão de ajudar uma de suas filhas, foi se assumindo como mãe de santo.
“Não queria. Na época, trabalhava em dois serviços e não tinha muito tempo”, conta Leisa, que há mais de 20 anos integra a nação Gege, no entanto, também dedica seu tempo a cuidar de pessoas da terceira idade, como acompanhante.
O fato de atuar como “mãe de santo”, porém, não é o que lhe traz nestas páginas hoje.
Independente de sua espiritualidade, Marilei é vista com uma forte admiração por todos que a cercam. E o que motiva isso é exatamente a sua entrega para com o próximo, sem a mínima distinção.
Segundo duas de suas “filhas” presente na reportagem, a manicure, Débora de Freitas, 24 anos, e a técnica de enfermagem, Neida Duarte, 38 anos, a sua entrega ao próximo é total.
“Estava precisando de ajuda, pois estava muito doente. Ela me apoiou em tudo e agiu desde o início como uma mãe de verdade. Daquelas que não pedem absolutamente nada em troca e se entregam de corpo e alma”, declara Débora (abaixo), também mãe de um menino.
Apesar de conhecer Marilei desde a infância, há dois anos, a manicure conta que ela não só lhe deu o devido amparo, como também fez questão de estar presente nas consultas e exames médicos, depois que descobriu que estava com problemas sérios em seu ovário.
Para ajudar os outros, Débora ressalta que Marilei muitas vezes esquece de si própria. “Ela é atenciosa demais. Fora que é uma batalhadora, esforçada, está sempre ligando, querendo saber da gente. Tenho uma ligação e carinho muito grande por ela”, evidencia.
Casada há 32 anos, e com um casal de filhos biológicos, Marilei não pensa duas vezes ao sair de casa para ajudar seus filhos do coração. Por eles, já passou dias em guarda em hospitais e até mesmo já viajou para outros lugares.
Afirma que jamais pediu dinheiro em troca. Pelo contrário. Diz que se tiver que tirar do próprio bolso, não pensa duas vezes. Em seu Centro, por exemplo, oferece estadia e comida para suas protegidas.
“A casa é de caridade. Aqui não se pede dinheiro”, salienta. Para solucionar o problema de seus filhos, Marilei confessa que “não há limites” e cita uma série de exemplos. “Minha maior felicidade é vê-las crescer e vencer”, completa.
Débora e Neida (acima) concordam que não existem abismos que diferenciem a “mãe Leisa” da mãe Marilei. O instinto protetor, de entrega, amor e carinho não encontram hierarquias ou denominações. Ideia também defendida por Marilei.
“Em primeiro lugar, sou igual a elas. Não sou melhor do que ninguém. Escuto e compartilho os meus defeitos, porque todo mundo os possui. E essa abertura só existe, pois acima de nós só Deus e os orixás”, pontua Marilei.
“O meu papel é dar o melhor da minha essência, da minha pessoa e da minha fé”, diz a conselheira, que como mãe também sabe virar uma verdadeira fera para proteger seus afilhados.
“Sou mãezona mesmo, daquelas que ri e chora junto, pega no colo e se preciso for, saio, corro atrás e não admito que falem mal”, finaliza Marilei.
“O que mais preservo nela é a sinceridade. Neste lugar, antes de qualquer santo, somos uma família, que briga, faz as pazes, divide e compartilha o que tem e isso só é possível quando se tem uma pessoa especial como ela. Uma referência capaz de lidar com qualquer tipo de problema sem distinguir ninguém, apenas se doando como mãe, amiga e cúmplice”, encerra Neida (foto acima).