Dany Laferrière, escritor que escapou por um triz da morte no terremoto de 12 de janeiro, concede reveladora entrevista a Christine Rousseau, do jornal francês Le Monde.
O escritor, que esteve em Porto Alegre em março de 2006, na UFRGS, onde proferiu palestras, e em 2007 em Salvador para o congresso da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses), rebate a idéia de que o Haiti recebeu punição como fruto de uma maldição e apela ao mundo que ajude esse povo sofrido, vítima de colonização cruel.
Recompensado em 2009 como o prêmio Médicis pelo seu romance L'Enigme du retour [O enigma do retorno], Dany Laferrière estava no Haiti entre os escritores convidados para o festival “Etonnants Voyageurs” [Admiráveis Viajantes], que deveria acontecer em Porto Príncipe, de 14 a 21 de janeiro. Após alguns dias na capital haitiana, de volta a Montreal onde reside há muitos anos em meio à expressiva comunidade haitiana, eis a entrevista que concedeu ao jornal francês:
“Eu estava no Hotel Karibé, que se situa em Pétionville (bairro de classe alta), na companhia do editor Rodney Saint-Eloi, que acabava de chegar e queria ir ao seu quarto. Como eu estava com fome, levei-o ao restaurante, e isso provavelmente o salvou… Estávamos jantando quando ouvimos um barulho muito forte. Pensei que era uma explosão que vinha das cozinhas; em seguida compreendi que se tratava de um terremoto. Saí imediatamente e me deitei no chão. Houve sessenta segundos intermináveis quando tive não apenas a impressão de que aquilo não terminaria jamais, mas que o solo poderia se abrir. Foi enorme. Tem-se o sentimento de que a terra se torna uma folha de papel. Não há mais densidade, o solo totalmente mole, você não sente mais nada.
Depois desses sessenta segundos nos levantamos e dissemos que era preciso nos afastarmos do hotel, uma construção bem alta, logo, pouco segura. Descemos então em direção às quadras de tênis onde todos se agruparam. Dois ou três minutos mais tarde, começamos a ouvir gritos…
Perto do hotel, onde havia apenas alguns destroços, no pátio, os pequenos imóveis que as pessoas alugam estavam todos destruídos. Contamos nove mortos. Ao mesmo tempo em que temíamos outros abalos, algumas pessoas levantaram para começar a socorrer.
Um enorme silêncio caiu sobre a cidade. Ninguém se mexia, ou quase ninguém.
Cada um tentava imaginar onde poderiam encontrar seus próximos.
No momento em que o sismo se produziu, terça-feira 12 de janeiro, Porto Príncipe estava em pleno movimento. Às 16 horas os estudantes ainda vagam depois das aulas. É o momento em que as pessoas fazem suas últimas compras antes de voltar para casa, quando há engarrafamentos.
Hora de dispersão total da sociedade, de espalhamento. Entre 15 e 16 horas, você sabe onde se encontram seus próximos, mas não às 16 e 50. A angústia era total, criando um silêncio ensurdecedor que durou horas. Em seguida começamos a procurar.
Voltamos ao hotel, e, graças à rádio americana e ao boca-em-boca, soubemos que o palácio presidencial tinha desabado, mas que o presidente René Préval estava salvo. À nossa volta, porém, ninguém tinha notícias da família.
Tive notícias da minha graças ao meu amigo, o romancista Lyonel Trouillot. Mesmo com dificuldades para caminhar, ele veio a pé até o hotel. Estávamos na quadra de tênis e ele não nos viu. Voltou de carro no dia seguinte para levar-me até a casa da minha mãe.
Depois disso fomos ver o grande Frankétienne [dramaturgo e escritor], que teve a casa fissurada e estava em lágrimas. Um pouco antes do sismo ele ensaiava uma de suas peças de teatro que evoca um terremoto em Porto Príncipe. Ele me disse: “Não podemos mais interpretar essa peça”. Respondi: “Não desanime, é a cultura que nos salvará. Faça o que sabe fazer”. Esse terremoto é um acontecimento trágico, mas a cultura é o que estrutura este país.
Incitei-o a sair dizendo que precisavam vê-lo. Quando os referenciais físicos caem, só restam os referenciais humanos. Frankétienne, esse imenso artista, é metáfora de Porto Príncipe. Era preciso que saísse de sua casa. Quando fui à casa de minha mãe fiquei angustiado, pois vi imóveis em aparência sólidos, totalmente destruídos, e inumeráveis vítimas também.
Mesmo na menos atingida Pétionville eram muitos. Comecei a contar e parei... Eram pilhas de corpos que as pessoas depunham com cuidado ao longo das estradas, cobrindo-os com um lençol ou tecido. Depois do tempo de silêncio e da angústia as pessoas começaram a sair e a se organizar, a tapar os buracos de suas casas.
O que salva esta cidade é a energia dos mais pobres. Para ajudar, buscar o que comer, todas essas pessoas criaram uma grande energia. Deram a impressão de que a cidade estava viva. Sem eles Porto Príncipe seria uma cidade morta, pois a maioria das pessoas que têm do que viver permaneceram em suas casas.
Foi para dar testemunho dessa energia que voltei a Montreal, mas não apenas por isso. Quando a Embaixada do Canadá propôs embarcar na sexta-feira, aceitei, pois temia que a catástrofe provocasse um discurso estereotipado demais.
É preciso cessar de empregar o termo ‘maldição’. É uma palavra insultante, que subentende que o Haiti fez algo de ruim e está pagando por isso. É uma palavra que, cientificamente, nada quer dizer.
Sofremos ciclones por razões precisas e não houve terremoto com tamanha magnitude há duzentos anos. Se fosse maldição, então teríamos também que dizer que a Califórnia ou o Japão são malditos.
Corre ainda que os televangelistas americanos pretendem que os haitianos fizeram um pacto com o diabo… Fariam melhor se falassem dessa energia incrível que eu vi, desses homens e mulheres que se entreajudam com coragem e dignidade. Embora a cidade esteja parcialmente destruída e o Estado decapitado, as pessoas permanecem, trabalham e vivem. Então, por favor, cessem de empregar o termo maldição; o Haiti nada fez, não está pagando nada, é uma catástrofe que poderia acontecer a qualquer um”.
Para Dany Laferrière, outra palavra que é preciso cessar de empregar a torto e a direito é pilhagem. Quando as pessoas, em perigo de vida, vão aos escombros buscar o que beber e alimentar antes que as gruas venham tudo destruir, isso não se aparenta a pilhagem, mas a sobrevida. Haverá sem dúvida saques mais tarde, pois toda cidade de dois milhões de habitantes possui sua quota de bandidos, mas até aqui o que viu são pessoas que fazem o que podem para sobreviver.
Com relação à percepção sobre a mobilização internacional, o escritor diz que desta vez a ajuda é séria, não um gesto teatral como se produziu no passado. Percebe-se que os governos estrangeiros querem verdadeiramente fazer alguma coisa pelo Haiti; e também, no país, ninguém quer desviar essa ajuda.
O que aconteceu é excessivamente grave. Há tanto a fazer, começando por recolher os mortos. Isso sem dúvida levará várias semanas. Em seguida, será necessário desentulhar toda a cidade para evitar as epidemias. Mas o problema número um é a água que em Porto Príncipe está poluída. Habitualmente é fervida para beber, mas não há mais gás.
Os haitianos esperam muito da comunidade internacional. Se as coisas são decididas em um nível tão alto, no âmbito de um vasto plano de reconstrução, então estão prontos a aceitar este último sofrimento. A representação do Estado tendo sido atingida e o governo dizimado, é o momento de ir ao povo, direto, e de enfim fazer alguma coisa audaciosa por esse país.